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FORMAÇÃO DA QUESTÃO NA QUESTÃO DA FORMAÇÃO:
escrever e reler, ler
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RESUMO: A pretensão deste trabalho é trazer à baila a importância da sustentação de uma questão na formação do analista, apostando na leitura, na releitura e na escrita como possíveis vias para tal.
Palavras-chave: questão, formação do analista, ler, reler, escrever, desejo do analista.
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“I look at what I write so that I can see what I think.” 1
(Eu olho para aquilo que escrevo para que eu possa ver aquilo que eu penso.)
W.H. Auden
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“Por que eu estou aqui, em uma Escola de Psicanálise, na companhia de outros analistas, debruçado sobre um texto literário?”
Destaco a pergunta acima, que me veio durante a Oficina de Literatura do Ato Freudiano, para introduzir, com um exemplo, a questão que quero trazer à tona. Vou tentar trilhar um caminho lógico de como essa pergunta se fez questão e também de como essa questão tem a ver com a minha formação, a formação de um analista.
Gostaria, primeiramente, de tentar distinguir dois significantes para o meu percurso: o significante pergunta e o significante questão.
Chamo aqui de pergunta uma sentença como a que abre esse artigo. Pergunta é, a partir de agora, pelo menos para nós que estamos caminhando juntos nesse texto, a dúvida, aquilo que interrompeu o discurso, a lâmpada que se acendeu.
Juntemos, então, algumas perguntas como essa, que antes estavam isoladas ou desligadas. O emaranhado que surgir dessa conexão de perguntas é o que eu gostaria de chamar de questão. Por exemplo, essa pergunta que me surgiu na Oficina de Literatura agarrou-se a tantas outras, que vieram antes ou depois dela, como, por exemplo: “por que ler em voz alta?”, ou “por que estamos lendo este texto?”, ou “como este texto vai afetar minha formação?”, ou “como gozar deste texto neste exato momento?”, ou, ainda, “como lidar com o fato de ter sido atravessado por um texto e, ao levantar os olhos do livro, me ver cercado de outros leitores, de outros analistas, de outros colegas?”.
Essa tentativa de diferenciar pergunta e questão é, mais do que um movimento de conceituação, uma tentativa de criar um par de significantes que me seja produtivo para ir adiante; uma tentativa de ultrapassar o par pergunta/resposta em direção ao par pergunta/questão.
Nesse movimento que proponho, as perguntas fundam a questão; e a questão não se devolve à pergunta, como faz uma resposta. Antes, toma-a para remetê-la a uma outra pergunta, a outras perguntas, fazendo-se questão: um intrincado mar de interrogações. Não é um par que se complementa, mas um par que se alimenta.
Essa brincadeira com esses significantes tem um propósito mais ambicioso: separar, para o significante questão, uma posição mais larga e mais dinâmica. A questão não simplesmente como aquilo que indaga, que interroga, mas como algo que se constrói, que se compõe, que se forma. E, mais além, que não para de se formar.
Volto, então, à nossa Oficina de Literatura, na qual, durante as leituras, sou assaltado por várias perguntas. Nada de novo até aí – poderia alguém acusar –, já que sabemos que essa é uma propriedade da leitura, a de germinar perguntas. No entanto, com o tempo, percebi que essas perguntas que agora me alcançavam pareciam fazer parte dessa outra dinâmica que descrevi: não iam sendo respondidas. No caminho em direção às respostas, esbarravam em outras perguntas.
O que faria então uma pergunta, ao invés de rumar para uma resposta, dirigir-se a outras perguntas? O que havia mudado nessa minha relação com o texto?
Parece-me que, por alguma via, eu estou reaprendendo a ler. Não a todo momento, mas especialmente nos marcados pelas palavras (e perguntas) dos meus colegas analistas, o que, obviamente, acontece nas atividades do Ato Freudiano, especialmente em nossa Oficina de Literatura. Sinto que Freud, ou ainda melhor, que sua invenção – o Inconsciente – me ensina a ler… e me entusiasma a reler; e esse é um ponto importante. Não é um reler qualquer. Esse reler ao qual me sinto impulsionado me permite estar atento – já de antemão – a uma possível diferente leitura, que não a do gozo. Permite-me também fazer uma pergunta, que se soma às duas últimas que levantei: será que o que distingue uma pergunta que clama por resposta de uma pergunta que se aglutina a outras perguntas estaria na ideia de que essas perguntas são lançadas de lugares diferentes?
Reler é fácil. Fazer uma releitura que comporte alguma novidade já é outra história. Uma releitura pode ser estéril, pode ser improdutiva, pode não trazer outro ponto de vista. O importante para se fazer uma questão é estar vendo a coisa de outra posição. No entanto, muitas releituras são flagrantemente imaginárias, prodigiosas para desprezar os deslocamentos nos quais o próprio imaginário se empenhou. Essas releituras não trazem novidades, já que o imaginário está sempre ansioso para ratificar aquilo que ele pensa já ter decifrado, mas que nem sequer foi cogitado. Essa ideia, de se reler insistentemente uma fantasia, me remete à imagem de um palhaço de circo que atira uma flecha para o alto, larga o arco, toma o alvo em mãos e passa a perseguir a flecha em sua queda. Assim, flecha e alvo nunca escapam de seu destino comum. Todavia, o alvo não “é acertado” pela flecha, e a flecha também não “acerta” o alvo. Não se tem nem um, nem outro: nem o sucesso, nem o fracasso; apenas a certeza de que as coisas terminarão como deveriam: flecha fincada no alvo! É um fort-da escamoteado, fantasiado de desafio. As releituras que operam desse modo não fazem questão. Sempre acertam o alvo, sempre comem o doce.
Na nossa cultura, várias perguntas são feitas. Há – não em muitos lugares, mas há – um elogio das releituras, das possibilidades, da incerteza, do debate. Em alguns meios, como o acadêmico, por exemplo, há até mesmo a circulação de termos caros à Psicanálise, como o não-saber, a falta, e por aí vai. E há, também, a louvação da dúvida, do questionamento. Há inclusive uma pluralidade de lugares de onde partem essas perguntas: variadas correntes filosóficas, investigações científicas, ideologias políticas, manifestações artísticas, discussões religiosas… sem contar a tão aclamada interdisciplinaridade, que se propõe justamente a isso, a entrelaçar os conhecimentos, fazendo surgir novas “questões”. Então o que seria diferente na questão de um psicanalista, ou, ainda, de um analista em permanente formação? Talvez o fato de essas perguntas que emergem na cultura, a despeito das tantas distintas proveniências, serem feitas, com frequência, do mesmo lugar: dessa base cravada no Imaginário. De diversos intelectos partem perguntas, mas quantas delas (não todas!) não nos mostram o palhaço correndo com o alvo atrás da própria flecha? Talvez ao analista caiba o desafio de lançar a pergunta de um outro lugar, que não do Imaginário. Encontrar esses lugares, ou fundá-los, numa aposta, pode ser a essencial diferença nesse processo de se formar uma questão. Eis uma possibilidade de inaugurar, então, um outro olhar: uma flecha que não seja refém do alvo para o qual viaja, ou, em outra chance, uma flecha que tenha como endereço um alvo que se move, sim, mas não em direção à flecha. Ou, quem sabe, uma flecha que possa ser simplesmente lançada, para o alto, para adiante, não importa.
Não resisto a dizer que espero que sejam também abundantes as releituras do gozo, pois são gozosas, gostosas. Deus nos livre de prescindirmos de regar o nosso imaginário com essas releituras! Como vamos fazer para drená-lo de tanta água, depois, aí que se vire cada um. Mas não podemos ficar só nisso.
O percurso que aqui estou tentando mostrar – da pergunta que pipoca durante uma leitura até uma questão que se coloca para um sujeito – só se abre como possível se o lermos tendo como referencial o desejo. Em outras palavras, a formação de uma questão pega carona lá com o desejo de ler, e se depara no caminho com o desejo de reler, e, implicada por leituras e releituras, a própria questão desembarca o sujeito diante do desejo de escrever.
E é aqui que entra a frase que serve de espinha dorsal a este trabalho: “Eu olho para aquilo que escrevo para que eu possa ver aquilo que eu penso”. Ela fala de uma escrita que é capaz de dar lugar a um novo olhar, de reinvestir o ato da leitura, o que estabelecemos como pré-requisito para a formação de uma questão. E se a escrita a que se chega é capaz de nos remeter a uma nova leitura – até mesmo do que se “pensa” –, a questão da formação se apresenta dinamicamente: o que se escreve se enlaça com o que se lê, o que se lê se enlaça com o que se relê, o que se relê se enlaça com o que se escreve.
Para mim – que me nomeio escritor, no sentido literato da coisa, com todo o jugo que essa nomeação carrega –, esse desejo, o de escrever, reaparece, porém, com novas cores. Dessa vez, não o desejo de escrever aquilo que eu sou (que é o que venho tentando com a Literatura, na função de autor, ainda que o efeito seja o de “não sou”), mas um outro desejo, que deseja escrever não o que “há” para ser escrito, pretensão tão alta dos escritores, mas aquilo que foi lido, como letra, no sentido colocado por Vidal2, que noz diz: “A letra é efeito de discurso”. O desejo de escrever o que foi lido não para a verdade, mas para uma construção, para uma questão, para um desejo.
Então a questão anda: será que esse desejo de ler (ler o texto, ler o significante, ler a cultura) e esse desejo de reler (reler de outro modo, reler de outro lugar, reler como quem lê) e esse desejo de escrever (além da metáfora, além do que se sabe)… será que esses desejos podem ser tonalidades desse outro desejo, que é o desejo de fazer questão? Se couber, acrescente-se ainda: e o que isso tem a ver com o desejo do analista?
Eis a questão! Nem tanto. Não é a questão. Mas eis aqui a minha questão, que, depois de tantas voltas, já se coloca em outras interrogações, pois foi alcançada por outras perguntas: o que é esse tal de desejo do analista? E o que seria esse desejo de fazer questão? E esse desejo de ler, de reler e de escrever? Ler o quê? Reler o quê? Escrever o quê? Por que eu estou aqui, em uma Escola de Psicanálise, na companhia de outros analistas, debruçado sobre um texto literário? Por que sustentar uma Oficina de Literatura? Posso?
Vejo, agora, que deixei muitas perguntas no percurso – quem sabe até mesmo no intuito de dar corpo à ideia que tinha inicialmente, de que há mais proveito em se sustentar as perguntas do que em respondê-las – mas convém fazer uma apologia das respostas. Se, por um lado, tenho a convicção de que a formação de um analista avança de questão em questão, carregadas de todas suas perguntas, por outro, tenho a suspeita de que o desejo de fazer questão não é capaz de haver senão atado ao desejo de fazer resposta. E, se resposta e desejo aparecem confortáveis na mesma locução, vou abrir mão da ideia de trabalhar com pares para admitir um trio de significantes que acredito ser fértil: resposta/pergunta/questão. A cada Oficina de Literatura (e também a cada letra que leio), passei a acalentar a esperança de provar da ousadia de inventar respostas para tantas perguntas: escrevendo, relendo, lendo, formando questões, fazendo perguntas. As respostas aparecem também – sim! – e como me regozijo quando me encontro com elas! Mas o encontro é breve, pois, ainda quando expressas em assertivas afirmações, tais respostas logo ganham contornos interrogativos, mesmo que lhes faltem as pontuações devidas.
Nesse enredo, por fim, sem ter as respostas que gostaria de ter para compartilhar – que me escaparam à medida que escrevia esse trabalho –, ofereço esse chiste que li recentemente, que não sei se faz limite com uma resposta ou com uma pergunta. Vou tratá-lo, portanto, com o apreço com que devemos tratar uma questão.
Um velho rabino é interrogado por seu aluno:
– Por que vocês, rabinos, com tanta frequência, expressam seus ensinamentos em forma de pergunta?
O rabino retruca:
– E o que há de errado com uma pergunta? 3
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NOTAS
* Trabalhado apresentado na XVII Jornada do Ato Freudiano, “O campo lacaniano”, 2011.
1 FOER, J.S. apud Auden. Entrevista a Jessica Roy, NYU Local.
2 VIDAL, Eduardo. Em torno do E da questão.
3 YANCEY, P. apud Jaroslav Pelikan, 1995, p.100.
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BIBLIOGRAFIA
FOER, J.S. Entrevista a Jessica Roy. In: NYU Local, 26 de março de 2009. Disponível em: http://nyulocal.com/entertainment/2009/03/26/an-interview-with-nyuprofessor-and-novelist-jonathan-safran-foer/. Acesso em 6 de junho de 2012.
VIDAL, Eduardo. Em torno do E da questão. Revista eletrônica Aletria. Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários. UFMG, 2005. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit.
YANCEY, Philip. O Jesus que eu nunca conheci. São Paulo: Editora Vida, 1995.
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Este texto foi publicado, em 2012, na Revista no 7 do Ato Freudiano.