VIRADA
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Quando Conceição, em uma manhã, despertou de sonhos intranquilos, viu-se, em sua cama, transformada em uma onça pintada. Sentiu os pelos cobrindo todo seu corpo e, quando bocejou, assustou-se com a amplitude de sua mandíbula. Olhou para si e vislumbrou o estampado de seu corpo, as garras imensas. O calor de sua respiração logo encheu o quarto. “O que aconteceu comigo?” – pensou.
Por alguns instantes, Conceição insistiu na ideia de que sonhava, mas não era verdade. A realidade estava instalada em seu corpo. “O que faz uma pessoa virar onça?” – era a pergunta que lhe habitava.
Tentou rememorar o dia anterior. Elencou alguns possíveis gatilhos: a discussão com o ex-marido sobre o valor da pensão dos filhos; a descoberta de que a filha mais velha tinha uma identidade falsa; o vizinho que deixava o lixo ir pingando pelo corredor do prédio; os calores da menopausa; sua mãe lhe falando, sem sutilezas, que ela estava gorda. No fim, não optou por nenhum desses. Declarou – para si mesma – que a causa de ter virado onça foi o e-mail recebido da chefe, que pediu a ela que não atrasasse novamente a entrega da planilha. “Novamente!?”
Conceição ficou receosa de sair do quarto e assustar os filhos, mas eles já tinham saído para a escola. Quando viu o estado em que tinham deixado a cozinha, ela quase virou uma onça. Novamente. Depois da raiva, até achou proveitosa a bagunça feita pelas crias, afinal, ficava mais fácil de comer as comidas espalhadas pela mesa e pelo chão: restos, farelos, migalhas.
Alimentada – não a contento –, decidiu que precisava espairecer, dar uma volta. Carecia de pensar no acontecido. Como sairia sem ser notada? Pensou que talvez fosse melhor ter se metamorfoseado num inseto. Decidiu ir pelas escadas. Saiu pelo corredor, pata ante pata, fazendo uso de sua felinidade sorrateira.
Metálica e subitamente, a porta do elevador se abriu. Dentro dele havia uma onça… “se bem que essa onça… essa onça está parecendo o Seu Chico transformado em onça”. Ela decidiu entrar. Ele a cumprimentou com um menear de cabeça.
Poderia ter sido um choque, mas não foi. Foi apenas um deslumbramento. Nas ruas, as onças andavam livremente. Parque Halfeld, Santa Rita, Santo Antônio. Rio Branco, que linda! Independência! Conceição ficou maravilhada. A paisagem estava dourada, pintada de preto. Sua curiosidade lhe dizia para perguntar às outras onças quem elas eram e por que razão tinham virado onças. Mas logo lhe ocorreu que onças não conversam. Falar até falam, mas não conversam muito. Talvez, se ela tivesse ido adiante, descobriria as repostas que cada onça dava para si.
Dona Lourdes: o plano de saúde negou o procedimento. Mário: a irmã mais nova enfiara um biscoito dentro do seu videogame. Valentina: o noivo quis comemorar o aniversário dela num festival de food truck. William: o computador começou a instalar atualizações. Alexandre: resolveu ligar para a operadora telefônica para cancelar o pacote de serviços. Seu Paulo: o governo fascista anunciava mais uma investida contra a educação. Vó Júlia: o médico vestido de palhaço contava piadas machistas… no hospital. Diana: o pai se recusava a aceitar que ela tinha uma namorada. Betinho: não teve merenda na escola. Seu Eugênio: o colega de trabalho tinha virado um rinoceronte.
De início, foi um alívio. “Somos todos onças… ou melhor, somos todxs onças”. Ou melhor: #somxstodxsonçxs #prayfortigers #RIPhomosapiens – consolou-se Conceição. Conceição se consolou: “Pelo menos não viramos estátuas de sal… nem de pedra”. Foi o jeito dela de seguir em frente. Aprendeu a viver bem entre as outras onças.
Um dia alguém fez a piada da “selva de pedra”. Todos riram. Mostrando os dentes.
Com-tudo, entre-tanto, toda-via… certa manhã, Carlinhos despertou de uma noite sem sonhos… e viu-se transformado em um menino.
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Este texto foi publicado no jornal Tribuna de Minas, no dia 18 de maio de2019