PSICANÁLISE (A)ONDE:
inconsciente, cotidiano e movimento

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A invenção do inconsciente freudiano faz uma marca indelével na cultura ocidental, maculando os ideais de saberes ascéticos que vinham sendo perseguidos pela religião, pela filosofia e pela ciência. Mas se a psicanálise faz um corte tão radical na cultura, por que se sabe tão pouco sobre como isso funciona? Foucault ressalta que Freud – juntamente com Marx – é um fundador de discursividade, ou seja, inventa uma nova lógica para o discurso. E, muitas vezes, mesmo que não se esteja falando da invenção de Freud, o inconsciente está ali, nas palavras.

Freud fez um caminho exemplar. Seus primeiros escritos tinham um apelo ao cotidiano. Ele escolheu falar dos sonhos, dos atos falhos, dos chistes. Era uma maneira de tratar do observável, do verificável; era fazer algumas brechas no senso comum sobre coisas corriqueiras. Ao longo de sua trajetória, Freud também foi incansável em escrever cartas, fazer comentários sobre outras publicações e realizar conferências, revisitando com frequência alguns conceitos básicos. Foram atos políticos para garantir que o esforço feito a partir de seu desejo – que vinha gerando avanços na clínica e na teoria – pudesse granjear lugar no social. Para que a psicanálise fosse reconhecível e reconhecida. Para sustentar seu trabalho na clínica, Freud foi em direção a um laço social entre os psicanalistas. Transformou seu desejo em movimento, em transmissão.

No entanto, a partir do estranhamento de ver a psicanálise aparecer como significante e com seus significantes em tantos lugares equivocados, pergunto: será que a divulgação da psicanálise tem dado passos mais largos que sua transmissão? Será que, com alguma frequência, não padecemos com uma miragem, que tenta nos prender em um tempo (imaginário?) em que os significantes da psicanálise circulam por aí, mas no qual o inconsciente está excluído das experiências de saber?

Inspirado pelo título que Freud escolheu para um de seus trabalhos mais definitivos, “História do Movimento Psicanalítico”, defendo que a psicanálise é mais um movimento do que um campo do saber. E o movimento diz de algo que não está em um lugar só; ao contrário, diz do que está entre os muitos possíveis lugares. Lacan, ao propor uma escola com tempos, ou que façamos avançar a psicanálise, ou quando diz que não “cessa de tentar passar o passe”, também apostou no movimento. E logo viu que estava sozinho nessa empreitada. Porque esse é o único jeito de se movimentar, de movimentar alguma coisa: como sujeito. Um ato, além de ético, político também.

À guisa de argumentação, podemos falar desse ponto perene de resistência à sexualidade, à divisão do sujeito, ou sobre o desmentido da castração e a psicologia das massas. Podemos, inclusive, ressaltar que a “psicanálise não é para as massas”, “não é para qualquer um”, “nem é coisa para crianças”. Tudo isso está mesmo em campo. No entanto, sabemos que o discurso psicanalítico atravessa de maneiras diferentes culturas diferentes, revelando que a política importa nesse aspecto. Basta pensarmos no percurso que psicanálise fez na França, na Argentina, nos Estados Unidos ou no Brasil.

Nesse sentido, a pergunta sobre o movimento é: Onde estamos com a transmissão? Temos escutado o que vem dos diversos campos do saber, bem como a interferência das perguntas que endereçamos a esses lugares?

É fácil, atualmente, observar um congelamento das conversas, o qual vem acompanhado da institucionalização de alguns conceitos (principalmente sobre assuntos que nos são muito caros, como sexualidade, alteridade, liberdade e responsabilidade). Desse modo, fica evidenciado o nosso compromisso ético diário de polemizar não somente os preconceitos, mas também os conceitos, as significações, que são matéria não só da clínica, mas de um emaranhado simbólico no qual estamos todos enovelados.

Freud golpeia o homo sapiens quando afirma que “O Eu não é mais senhor de sua casa”. Essa sentença é herdeira das desconfianças com as sedimentações discursivas com as quais Freud se deparou, principalmente quando não encontrou na medicina e nas explicações físico-químicas ou anatômico-patológicas um lugar para seu desejo de saber sobre a etiologia das afecções nervosas. Então ele inventou o inconsciente, a pulsão, o recalque, o problema econômico do masoquismo. E apostou na transmissão. Ele moveu-se, deslocou-se, a partir de seu desejo. E, com isso, fez deslocar o resto.

Mas que movimentos podemos fazer para colocar em campo a transmissão? Freud nos deu a dica. Optou por levantar perguntas sobre coisas ordinárias, em questionar o senso comum. Não parou por aí, claro. Mas lembrou a todos que ali, naqueles assuntos tão comuns, tinha algo insabido. Se, por um lado, o início do século XX foi marcado por um florescer enigmático de ciências como economia, física, linguística, houve, por outro, o recrudescer de uma resistência: a profusão de informações e dúvidas encaminhou sociedades esclarecidas a pontos mínimos, a doutrinações avassaladoras. Estamos, no início do século XXI, em um momento similar (se é que não vivemos ainda o mesmo momento), pois os fanatismos estão na ponta da língua, as ideologias e crenças (políticas e religiosas) arrebanham adeptos a uma velocidade vertiginosa. É quase impossível estabelecer uma conversa sem acionar o medo e o rechaço à palavra do outro. O advento da revolução técnico-científica e da globalização multiplicou as fontes de informação e conhecimento, mas apavorou o cidadão comum, que foi lembrado de que não sabia de nada.

Esse não-saber dói mesmo, mas é a partir dele que se pode produzir algo novo.

“A política é destino”, disse Napoleão, enfatizando uma demanda de direção em relação à fraqueza ética da sociedade europeia do final do século XVIII. Freud aproveita-se dessa assertiva para postular que “a anatomia é o destino”, chamando a atenção para as questões do sujeito, das particularidades dos indivíduos e suas implicações inconscientes na vida anímica de cada um e nas dinâmicas sociais. Será que podemos pensar – seguindo o exemplo de Freud – em mais uma forma de articular política e anatomia, pólis e sujeito? Proponho, então, uma outra questão: o movimento é o destino?

Neném Prancha, uma das figuras lendárias do futebol brasileiro, cunhou uma dessas breves sabedorias populares, e por isso proveitosa: “Quem pede recebe, quem desloca tem preferência”. A frase, que tem muitas versões, possibilita-nos uma leitura: num jogo de futebol, se você pedir a bola, há uma chance de você recebê-la. Mas, se você se movimentar, estará livre, sem marcação, e, portanto, suas chances aumentam. É o movimento em direção aos espaços vazios do campo que permite que um jogador esteja disponível para receber a bola.

Gérard Wajcman, ao falar da relação entre a arte, a psicanálise e o século XX, elege um objeto para representá-lo: a ruína. Uma precisão poética de Wajcman. Um objeto que evoca a característica essencial do século passado: a destruição como tentativa de saída, de novidade. Uma saída atrapalhada, diga-se de passagem. Mas com efeitos, pois houve também avanços nesse mecanismo tão antigo. Aprendemos não só a destruir, mas a desconstruir. No entanto, para os psicanalistas, o verbo em questão – principalmente quando falamos em transmissão – é outro: é construir. Construções em análises, lembranças encobridoras; assim como o “Shoa de Lanzmann, o método analítico, a partir de ruínas, “engendra um presente, um passado e um futuro”. É o que Freud faz também: olha para as ruínas e vê a si mesmo, vê o trabalho, os possíveis movimentos.

Ao aquiescer esse objeto eleito por Wajcman, defendo que, a despeito de tantos eventos, o século XX foi um século com mais ação do que movimento. Nosso mundo, meio apavorado, fez poucas escolhas (ainda que as tenha feito, principalmente diante das tragédias), mas deu um show de acting. Até porque as angústias foram – e ainda são – abundantes.

Apeguemo-nos, então, ao desejo e – em meio a tantas paralisações sintomáticas e ações denegatórias – avancemos com a falta, que é sempre excelente para convocar o movimento.

Eppur si muove.

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Este texto foi apresentado na XX Jornada do Ato Freudiano, em dezembro de 2015.

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