PAI TENTA

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Foram os filhos que ligaram para ele.

– Mas vai dar muito trabalho…

– O senhor não precisa fazer nada, pai. A gente leva tudo. E lava toda a louça depois do almoço. Tá?

– Mas vir até Matias só pra almoçar, filha?

 – É dia dos pais! – a filha argumentou.

Quando desligou o telefone, a primeira coisa que veio à cabeça de Seu Lívio foi o semblante da esposa. Há nove meses, sua companheira partira. Desde então, estava sem saber como reconhecer a alegria. Estranhava até mesmo ver a animação dos filhos para encontros como aquele, mas não via por que questioná-la; questioná-los.

No domingo, aguardou-os para o almoço. Filhos, netos e um bisneto ainda na barriga. Trouxeram comidas bem preparadas; algumas, até desconhecidas. Seu Lívio gostou de quase todas.

Depois da refeição, assumiu a tarefa que era da esposa: enquanto todos estavam com os olhos pregados nas telas, ele dividiu o resto da comida em vasilhas de plástico, para que cada um levasse um pouco para casa. Era já um hábito familiar, após esses encontros. Numa ocasião – antes de a esposa se adoentar –, Seu Lívio observara todos os filhos pegando suas vasilhas e se despedindo da mãe. Nenhum disse obrigado.

– Eles não falaram obrigado para você! Eles nunca falam!

– Falam sim, Lívio. Eles estavam é com pressa. Com a cabeça nas coisas deles…

Por isso, dessa vez, a vasilha tinha também, pare ele, ares de teste.

Todos se surpreenderam quando viram que o pai havia assumido a tarefa. Elogiaram, brincaram com a novidade, fizeram algumas piadas. Nenhum deles agradeceu. Nem os filhos, nem os netos. Seu Lívio, por um segundo, teve pena do bisneto que viria.

“Eu poderia ter colocado veneno nessa comida…”, ele pensou. Foi um pensamento rápido e agudo, desses que costuma ser fugidios. Porém, Seu Lívio não o espantou. Sabia que ele era fruto de uma raiva que guardava dos filhos já há algum tempo, “e raiva não adianta engolir, ela volta”.

Seu Lívio fazia juízo deles:

Pedro Henrique, o filho mais velho, era egoísta, avarento e tinha inveja dos irmãos. Não ajudava ninguém na família. Era muito querido por quem não convivia com ele. Enganou o melhor amigo por causa de um “empreendimento”. A ex-mulher e os filhos o odiavam, de modo que Seu Lívio teve pouco contato com esses netos.

Lisandra, a filha do meio, era mentirosa. Mentiu a vida toda, inclusive para si mesma. Principalmente para si mesma. Era a mais ingrata das filhas, pois culpava os outros por seus fracassos, e os pais acabavam com uma porção maior dessas culpas. Não dividia nada, nem os poucos sucessos.

João Ricardo, o filho mais novo, era bobo. Fazia o que lhe era dito para fazer. Falava em reforma na esquerda, desigualdade social e melhorias na educação, mas acreditava no que chamava de “cultura pop” e era o melhor dos filhos da classe média: amava os bens, as viagens e as comidas gourmet. Para ele, que não pensava muito, tudo isso era bem compatível. Julgava-se formador de opinião, mas os outros riam dele.

A esposa fora diagnosticada com câncer há alguns anos. Entre o diagnóstico e a morte, foram quatro anos de aflição, de incertezas, de angústias inomináveis. Fora a dor. “Eu pegaria essa maldita dor pra mim, seu eu pudesse…”. Nenhum dos três filhos passara uma noite sequer com a mãe. Nem em casa, nem no hospital.

“Não lembro direito se passaram. Talvez tenham passado. Mas não ajudaram. Não queriam saber da mãe moribunda. Muito ocupados em fazer nada… a mãe que deu a vida por eles! Tempo, e trabalho, e dinheiro, e razão!”

Os filhos moravam em Juiz de Fora, cidade vizinha, que ficava a 30 km de distância. Mudaram para lá ainda na adolescência, para estudar em escolas particulares.

Todos eles, quando a mãe morreu, fizeram posts no Facebook, falando da saudade e da gratidão que sentiam pela mãe. “O melhor pai do mundo”, Lisandra colocou na legenda de uma foto, certa vez. Aqueles dizeres não eram para o pai – ele sabia –, mas para os outros, os desconhecidos. Queria ser invejada. Mas não era. “Eu estava magro naquela foto. Pai de merda que eu sou. Se fosse bom pai, não tinha esses filhos tão ruins.”

Esse pensamento ele espantou logo. Se vaticinasse a lógica do filho-de-merda-pai-de-merda, colocaria a memória da esposa em risco. E ela fora uma boa mãe, ele não queria duvidar. “Uma ótima mãe!”

“Que veneno, que nada! Pai não mata filho. É filho que mata pai…”

Resolveu seguir o conselho da falecida esposa, vivo amor: vai pro lugar que é bom, meu bem! Vai pros lugares bons, ela dizia.

Pensou então que o João Ricardo era um ótimo colega de trabalho, todos diziam. Lisandra era muito engraçada, fazia as pessoas rirem, “e alegria é bom, né?”. Pedro Henrique era muito inteligente, sabia resolver as coisas. Pensou nos abraços, em quantas vezes tinham se abraçado. Os filhos tinham qualidades, ele sabia. Muitas até. Inclusive as de caráter. Não eram pessoas ruins, de todo.

Contudo, nos últimos tempos, a ingratidão tinha lhe engendrado a tal raiva. Talvez somente naquele domingo, ao reouvir – redizer, reviver – a voz de seu amor, ele tenha podido ir para um lugar mais possível, quase bom.

“O almoço estava uma delícia… e nós nos lembramos da viagem para Rio das Ostras, e eu pude falar que eu sinto falta de você, meu amor. Eles até me ouviram, sem me interromper ou me condenar. Eu arrumei comida nos potinhos marrons, como você fazia. Nessa hora, eu os amei como você os amava. Eles, surpreendentemente, arrumaram mesmo a cozinha.”

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