JOGO DO ESTRANHO

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Nosso planeta é um potinho solitário em meio à grande escuridão cósmica. Escondidos nessa vastidão, não há nenhum indício de que receberemos ajuda de algum outro lugar para nos salvar de nós mesmos.”
(Carl Sagan, in “O pálido ponto azul”)

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Imagine que uma alienígena venha visitar a Terra. Nós a recebemos muito bem, explicamos para ela como as coisas funcionam por aqui e, finalmente, optamos por levá-la para dar uma volta pelo planeta. Como ela chegou no Brasil, o passeio começa por São Paulo. Quando passamos sobrevoando o rio Tietê, a alienígena fala:

– Impressionante como vocês são inteligentes. Considerando que a água é um elemento fundamental para a vida de vocês, para beber, para preparar alimentos, para manutenção da saúde, para produção de outros materiais, vocês construíram esse caminho para que ela passe por toda a cidade, para que as pessoas possam se utilizar dela.

Então, meio sem graça, nós respondemos:

– É, não foi bem a gente que construiu, sabe? Já estava aí. A gente só foi se juntando em volta. Mas agora não dá mais pra usar essa água pra muita coisa.

– E por que não? – ela pergunta intrigada.

– Porque agora a gente joga bosta nela.

A alienígena, pega de surpresa pela resposta, deixa escapar:

– Estranho… muito estranho.

Agora eu pergunto: “e tá errada, a Dona Alienígena?”. Porque pra mim também é muito estranho jogar toneladas de bosta na água que nós mesmos vamos precisar usar.  Eu fico me perguntando por que nos acostumamos com isso. Por que, de repente, ao olhar para os nossos rios poluídos, não tomamos um susto e, meio desesperados, começamos a gritar: “gente, olha isso! Vem aqui ver! Estão jogando bosta e lixo na nossa água! Corre, gente! Alguém faz alguma coisa!”.

Mas hoje, eu não vou ficar só me perguntando. Eu vou perguntar pra você também. Até porque eu acredito que compartilhar perguntas pode ser mais importante do que compartilhar respostas. Eu criei esse jogo, que chama “Jogo do estranho”. Eu vou perguntar um monte de coisa, então se você quiser pegar um papel aí pra ir anotando suas respostas, pode ser útil. Ok? Vamos lá então.

  1. Você não acha estranho que a gente jogue tanta bosta, e tanto lixo, na água que a gente precisa para viver?
  2. Você não acha estranho que a gente só tenha esse planeta aqui pra morar, tipo, é nossa única casa, e que mesmo assim a gente faça tanta coisa para destruí-lo?
  3. Você não acha estranho, por exemplo, que uma criança tenha que trabalhar para garantir o próprio sustento?
  4. Você não acha estranho que algumas crianças – como foi o meu caso – estudem em escolas com quadra, piscina, computador, façam viagens para outras cidades e até outros países, estudem outras línguas, ganhem festas no clube e mochilas caras… enquanto outras crianças estudam em escolas precárias, e outras ainda, nem mesmo podem ir à escola?
  5. Você não acha estranho que milhares de pessoas no mundo, inclusive crianças, trabalhem em sistema de escravidão?
  6. Você não acha estranho que uma pessoa trabalhe oito horas por dia e ganhe menos de mil reais e uma outra também trabalhe oito horas por dia e ganhe mais de cem mil reais?
  7. Você não acha estranho que tenha tanta comida no mundo (nas plantações, nas feiras, nos supermercados, nos restaurantes, nos shoppings, no armário da sua casa) e que, mesmo assim, 820 milhões de pessoas passem fome no mundo?
  8. Você não acha estranho que algumas famílias sejam donas de hectares e mais hectares de terra enquanto outras famílias não tenham nem uma casa para morar?
  9. Você não acha estranho que quase todos os médicos do nosso país sejam brancos e que quase todas as faxineiras sejam pretas? Será que só os brancos gostam de ser médicos? Será que tem que ser uma mulher negra para poder limpar as coisas?
  10. Você não acha estranho que uma pessoa, porque a pele dela é preta, tenha mais chances de morrer assassinada?
  11. Você não acha estranho que as meninas e mulheres, em quase todos os lugares do mundo, tenham medo de andar sozinhas pois algum homem pode estuprá-las? Você não acha estranho que todas as mulheres que você conhece já vivenciaram situações de assédio sexual, assédio moral ou violência física?
  12. Você não acha estranho que milhões de mulheres – de estrelas de Hollywood a vendedoras de lojas – recebam menos que os homens, mesmo quando desempenham as mesmas funções?
  13. Você não acha estranho que existam países onde ser homossexual é um crime e, pior, alguns onde a população LGBT é condenada à morte? Aliás, você não acha muito estranho que algumas pessoas se incomodem tanto com o que as outras (que elas nem conhecem) fazem na cama?
  14. Você não acha estranho que o ministro da educação não valorize as escolas e universidades? Você não acha estranho que o ministro do meio ambiente apoie a destruição do meio ambiente?
  15. Você não acha estranho que, em uma pandemia que já ceifou milhares de vida humanas, os seres humanos sejam o maior obstáculo à cura?
  16. Você não acha estranho que a gente anda achando muito normal um monte de coisa estranha?

Desde criança eu viajo com alguma frequência para São Paulo, para visitar minha família. Há alguns anos atrás, quando um dia eu acordei no ônibus, eu senti o cheiro do Rio Tietê. Pensei “cheguei”. Entendem? Aquele era um cheiro familiar. Quando eu senti o cheiro do esgoto no rio, eu soube que eu tinha chegado ao meu destino. Eu não acordei alarmado e falei: “que cheiro estranho! Parece que jogaram… bosta no rio!”. Infelizmente.

Eu não vou fazer mais perguntas sobre o que é e o que não é estranho. Mas se você quiser, você pode voltar nas perguntas do nosso jogo e se perguntar: “será que tudo que eu achei estranho é mesmo estranho? Ou é familiar? É normal?”

Mentira.

Vou fazer uma última pergunta, que eu ganhei de presente dos meus amigos da Sala de Giz. A pergunta é: “que tipo de cura nós podemos, coletivamente, criar?”

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acho que foi você quem me falou sobre a baleia que há cinco dias carrega o filhote morto e dos momentos em que ela mergulha pegando o impulso necessário para jogar o corpo inerte mais uma vez no ar

mais do que tudo eu penso
nesses segundos do mergulho
afundar como se não houvesse
escolha
emergir e escolher
que


(Laura Assis in Mecânica de nuvens aplicada)

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No dia 13 de junho de 2020, este texto/vídeo foi publicado no Instagram da Sala de Giz. Lá, você pode me ver lendo-o, na íntegra.

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