Qual é o limite necessário para que o sujeito não derrape de um suportar a angústia em direção a um movimento masoquista? 

Muitas vezes, ao receber um paciente, ainda nas entrevistas preliminares, encontramos um “ponto cego”: uma fala aglutinada, emergencial e que – justamente por ser tão avessa a nuances de tempo e espaço – dificulta a escuta onde ela é tênue, pois o início do tratamento é um campo minado para a transferência, de modo que o analista tem pouco material significante. Nesse primeiro momento, angústia e gozo podem aparecer emaranhados.

Não delimitarei os conceitos de angústia e gozo. Que cada um traga de si o que é preciso para avançarmos neste ponto. Mas sublinho o vasto lugar que a angústia tem na obra de Freud; e o gozo, na obra de Lacan; para que fiquemos atentos a um lugar que, a meu ver, articula bem as inquietações de Freud com a angústia e as de Lacan com o gozo: o sintoma. Neste ano, em que o tema da Escola é a Metapsicologia Freudiana, as discussões sobre o sintoma podem ser bons exemplos para vislumbrar os abismos existentes entre os sistemas/tópicas, lacunas para as quais a etiologia do sintoma serve de ponte.

Em Inibição, Sintoma e Angústia (p. 22), Freud nos chama a atenção para o fato de que o Eu é a sede da angústia e que a produção da mesma não se atém ao ponto de vista econômico, pois “a angústia não é gerada novamente no recalque, e sim produzida como um estado afetivo, segundo uma imagem mnêmica já existente”. 

Esta aposta de Freud indica que, para além dos aspectos fenomenológicos (tão ligados à gênese da angústia) e das perspectivas econômicas (tão úteis para o trato com o gozo), podemos trilhar um caminho dificilmente nomeado, ou seja, metapsicológico. Por isso, a partir da clínica, tomo o sintoma como guia.

O que fazer com um paciente que chega como refém do seu sintoma? Como demovê-lo de uma sequência de actings, provenientes de um “não suportar” a angústia? Como admitir-lhe a repetição, sim, mas na fala? Freud e Lacan indicam a mesma direção: o manejo da transferência. O analista deve reconhecer o lugar da compulsão à repetição, que será reveladora disso que subsiste oculto na vida psíquica do analisante. É certo que Freud, ao dar à transferência um lugar tão importante na Psicanálise – ou como bem dizemos, fundamental – nos lembra também de que seu manejo é o desafio. 

Quando o paciente se mostra solícito a ponto de respeitar as condições básicas do tratamento, conseguimos normalmente dar um novo significado de transferência a todos os sintomas da doença, substituindo sua neurose ordinária por uma neurose de transferência, da qual ele pode ser curado pelo trabalho terapêutico. Assim a transferência cria uma zona intermediária entre a doença e a vida, através da qual se efetua a transição de uma para a outra. O novo estado assumiu todas as características da doença, mas representa uma enfermidade artificial, em toda parte acessível à nossa interferência. (Recordar, repetir e elaborar, p. 206)

Lacan, em A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder (p. 608), ao colocar os analistas na berlinda, pergunta: “Em que ponto estamos com a transferência?” Ao articular alguns pontos do trabalho de Daniel Lagache, Lacan nos lembra de um câmbio importante na escuta do analista: de não apenas ouvir a necessidade de repetição, mas, também, a repetição da necessidade. Cuidar da transferência, ele nos aponta, dando ouvidos a Freud, é o que pode permitir que o paciente fale. 

Sustentar a fala do paciente, até que ele coloque o analista em outro lugar, é dar uma chance à escuta. O respeito que se deve ao paciente não está ligado ao que ele fala. O que inclusive nos permite extirpar – não sem algum mal-estar – seu muito falar, armadilha do masoquismo. Mas há uma posição ética, em deixá-lo falar, que nos coloca na direção que importa: permitir que o paciente experimente, ainda que esporadicamente, a associação livre. 

A associação livre – que também está associada à palavra fundamental, quando se trata da psicanálise – é o caminho por onde se pode ouvir a demanda do sujeito, incluindo os enganos que o trouxeram até o consultório e as verdades que o mantêm falando.

Por intermédio da demanda, todo o passado se entreabre, até recônditos da primeira infância. Demandar: o sujeito nunca fez outra coisa, só pôde viver por isso, e nós entramos na sequência.

[…]

Pois a regressão não mostra outra coisa senão o retorno, no presente, de significantes comuns, em demandas para as quais há uma prescrição. (A direção do tratamento e os princípios do seu poder, p. 623)

Em Nomes-do-Pai ( p. 28), Lacan se vale da relação entre a fala e o sintoma para fazer um ponto de inflexão, a partir do qual seria possível distinguir o Imaginário do Simbólico. Alerta-nos também para a tentativa do paciente em tragar o analista para dentro do jogo, já que há espaço para que um discurso do Imaginário apareça.

Por não realizar a ordem do símbolo de forma viva, o sujeito realiza imagens desordenadas das quais elas são substitutas.

É isso que vai se interpor inicialmente em qualquer relação simbólica verdadeira.

O que o sujeito exprime inicialmente quando fala é esse registro que nós chamamos resistências, que não pode ser interpretado senão como uma realização hic et nunc, na situação e com o analista, da imagem ou das imagens da experiência precoce. É sobre isso, de fato, que toda a teoria da resistência foi edificada, mas somente depois do grande reconhecimento do valor simbólico do sintoma e de tudo o que pode ser analisado.

[…] essa resistência não é uma simples inércia oposta ao movimento terapêutico, como em física se pode dizer que a massa resiste a qualquer aceleração. Ela estabelece certo laço, que se opõe como tal, como ação humana, à do terapeuta, com a diferença de que o terapeuta não deve se enganar quanto a isso. Não é a ele, como realidade, que se opõem, é na medida em que em seu lugar é realizada certa imagem que o sujeito projeta sobre ele. (Nomes-do-pai, p. 28-29)

Isso faz retornar ao básico – pergunta expressa por pacientes e curiosos sobre a análise: por que, na psicanálise, não se aconselha?  O aconselhamento põe em campo a dualidade, e corre-se o risco de se estabelecer uma conversa, e não uma escuta. Aliás, uma conversa arriscada, já que nunca se sabe ao certo que lugar o analista ocupa na fantasia do paciente. Então o nada perde lugar (pois não tem ninguém falando para as paredes), e aí não se ouvem os significantes. Significados surgem, e muitos, como em qualquer conversa. E por isso gostamos tanto de conversar. Mas os significantes ficam retidos, e aí não tem como pensar em um tratamento no campo das pulsões.

É sobre esse ponto – a difícil lida com a questão pulsional – que Lacan nos recomenda. O chamado – e por que não, a demanda insabida do paciente – é para que interpretemos os significantes; não as palavras e seus enredos. Julgo que a evolução de uma pergunta é muito útil para o exercício da clínica: sou um analista? (eis a questão primordial) >> Tenho sido um analista para este paciente? >> Fui um analista para este paciente nesta sessão? 

Creio que tais questões surjam no a posteriori, mas elas podem nos salvar, como psicanalistas, de sustentar a teoria psicanalítica diante de um paciente. E a falação do analista, na análise, impede que haja ali um analista. O discurso deve ser do sujeito, do analisante. Sustenta-se, sim, a ética; com sorte, a técnica. Mas ser um psicanalista na poltrona pode resultar na condenação de nossos ouvidos.

Podemos pensar que o sintoma funciona como cajado, dando apoios ao paciente a fim de que este, na neurose de transferência, permita-se, concomitantemente, falar e relembrar, preservando aqui o sentido de lembranças encobridoras? A precipitação dos sintomas pode ser amiga da cura, permitindo que o paciente fale e elabore, ao invés de agir. 

A repetição do sintoma pode irritar, se o analista está em busca de palavras, e não de significantes. Lacan nos admoesta a respeito de um tipo de petulância do analista, que, após fechar os ouvidos para a repetição, surpreende-se com um acting out, e, ainda, com a persistência do sintoma, dizendo: “O sintoma simplesmente torna a brotar qual erva daninha, compulsão de repetição”. Mas, em uma tirada genial, nos esclarece sobre essa impostura. O sintoma não é pirraça do paciente. E muitas vezes é esse o lugar que a “somatização” dá a ele na cultura. “O paciente não vai abrir mão facilmente do seu sintoma” é uma frase constantemente mal interpretada.

Mas isso, é claro, não passa de um mal entendido. Não se fica curado porque se rememora. Rememora-se porque se fica curado. Desde que se descobriu essa fórmula, a reprodução dos sintomas já não constitui um problema, mas somente a reprodução dos analistas; a dos pacientes está resolvida (A direção do tratamento, p. 630)

Aí reside o embaraço que gerou a pergunta inicial desse trabalho: e se, no percurso da análise, a peleja do paciente com a angústia – ou seja, suportá-la para que sejam possíveis algumas construções – resultar em sulcos onde o sofrimento possa se alojar, nos quais o viés masoquista se desenrolaria, amparado por um mal-estar com o qual o paciente aprendeu, em análise, a contar como aliado?

Em um lampejo poético – como é bem característico do Sr. Sigmund Freud – ele nos diz (Inibição, Sintoma e Angústia, p. 26): “Ao cantar na escuridão, o andarilho nega seu medo, mas nem por isso enxerga mais claro”. Essa fala me soa como um alerta para que evitemos que o paciente encontre na análise, ao invés de um lugar para a escuta a partir de seu sintoma, um lugar confortável para o seu sintoma. Isso sim é um tiro no pé.

[…] o Eu se comporta como se fosse guiado por esta consideração: o sintoma já está presente e não pode ser eliminado; agora é necessário haver-se com esta situação e dela tirar a melhor vantagem possível.

[…] Desse modo o sintoma gradualmente se torna o representante de importantes interesses, adquire valor para afirmação de si, entrelaça-se cada vez mais intimamente com o Eu, torna-se parte imprescindível para ele (Inibição, Sintoma e Angústia, p. 29-30)

Que o paciente vai sempre querer gozar – até porque ele fala – isso não é novidade. Mas como tirar a sessão desta armadilha? Como discernir o que é manejo da transferência e o que é impostura? Quais são os indícios, senão o silêncio decorrente do susto com a escuta de um significante, para que se possa fazer um corte?

Estamos prevenidos de que, em termos objetais, o que serve ao prazer, pode também servir ao gozo. Valeria dizer também que o que serve ao desprazer, serve ao gozo, se pensarmos em quão habilidoso é o Eu para fazer alianças? Nesse sentido, é preciso colocar a escuta para flutuar, para captar que a pluralidade de objetos – manifesta em um sintoma que se traveste ao longo de um tratamento – não é indício de uma variedade de investimentos. A pulsão não faz par nem com o sintoma, nem com o objeto. 

Sustentar a demanda, amparando e aparando a fala do paciente – e também salvaguardar um lugar para o nada que preenche a transferência –, aparece então como um possível caminho para a cura. E, para tanto, um desafio espinhoso se impõe à escuta analítica: não ceder ao apelo do paciente, que é o de tomar suas elaborações e avanços como territórios conquistados, ou como resoluções bem sucedidas (valorizemos, sim!, seus passos). Mas, ao contrário, deve o analista estar ao lado do inconsciente e saber que o que se produz em análise também se dissolve ou é recalcado. Esse é meu jeito de dizer que não devemos dirigir a vida do paciente, mas sim o seu tratamento. É abrir vias para que o sujeito possa se surpreender com a novidade da satisfação pulsional, bem como com novas trilhas para seu desejo. Uma das belezas que vejo na análise, é que, como práxis, ela porta – talvez como nenhuma outra – a excelência de enodar e conciliar, para o sujeito, duas possibilidades (que outrora eram impossibilidades) aparentemente avessas: liberdade e responsabilidade. E se é verdade que “o homem não é mais senhor de sua casa”, é também bem característico de uma (psic)análise dar ao sujeito o aval para desfrutar de muitas moradas, a despeito de senhorios. Para tanto, é preciso inventar um tempo e um espaço – a sessão, dirigida pelo analista – para que angústia e gozo (e, claro, o sintoma) não sejam os caminhos, mas as balizas.

Este texto foi apresentado na XII Jornada de Cartéis do Ato Freudiano, em julho de 2015.

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