BONS TEMPOS
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A aurora ainda esticava seus róseos dedos sobre o dia quando o pequeno Henrique foi despertado pelo canto dos pássaros, ou talvez pela própria ansiedade. O cheiro do pão de queijo – receita da mãe – competia com o do chá de erva cidreira – trazida diretamente da horta da avó. Fez a deliciosa refeição – preparada pelo pai – como quem sabe que aquele é o início de um dia de deleite. Hoje é dia futebol.
Henrique despede-se da família e corre até a casa de Guilherme, que já espera o amigo no portão. Juntos, vão até a escola do bairro, onde as bicicletas das crianças ficam guardadas. Descem o morro embalados, beliscando o freio aqui e ali, e depois pedalam até alcançarem a estação na Avenida Rio Branco. Fazem aquele caminho quase todos os domingos, mas, desta vez, um frio na barriga faz com que eles entrem no vagão com uma sensação que mistura leveza e peso. Hoje é dia de decisão.
Quando desembarcam, próximos à Catedral, escutam o chamado de Fernando, outro amigo. Ele carrega, em uma das mãos, uma maçã. Na outra, as camisas. A alegria contagia o rosto dos três meninos. O uniforme do time, feito numa das tradicionais malharias da cidade, além da marca do hortifruti que patrocina o time, leva o nome de cada um dos meninos. Hoje é dia dos craques.
No meio do Parque Halfeld, o juiz apita para dar início da partida. O sol vazando por entre as árvores e o alvoroço da torcida agitam os corações. Enquanto a bola rola no campinho – “levantando no ar poeira e espírito” – ao redor, os juizforanos desfrutam da beleza de sua cidade. Nas mãos, livros, pastéis, churros e amores. Uma música sutil, entoada por vozes femininas, contorna todos os corpos: um presente das devotas da igreja de São Sebastião. Hoje é dia de celebração.
Os gritos eufóricos anunciam o término do jogo. Os campeões correm para abraçar os colegas e os pais. Cabisbaixos, Henrique, Guilherme e Fernando lamentam a derrota. Apesar dos dois gols de Ritinha e a cobrança de falta perfeita de Tonhão, o Atlético Clube dos Aventureiros Espaciais do Alto Grajaú perdeu a final da Copa dos Peladeiros Mirins de Juiz de Fora. A tristeza poderia ter durado, mas Dona Vera, vendedora de água de coco, traz impressa uma boa notícia para os três amigos. Hoje é dia de esperança.
Na capa da Tribuna de Minas, do dia 15 de julho de 2035, a manchete estampada na primeira página diz: “Cine Palace anuncia sessões gratuitas para as crianças durante as férias de Julho”. Os meninos se animam com as aventuras ainda desconhecidas que lhes reservam as telas do cinema. Guilherme tira da mochila um pacote de biscoito de polvilho, e Fernando compartilha o suco de goiaba com os amigos. Ao lado das bicicletas eles caminham pela cidade. O ontem é amigo. O amanhã, também. O hoje é aqui.
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Este texto foi publicado na Tribuna de Minas, em 11 de junho de 2017, em um especial de comemoração do aniversário de Juiz de Fora. Vários autores locais foram convidados. O exercício era pegar uma notícia da Tribuna como inspiração para um texto qualquer. Na época, escolhi uma notícia sobre o fechamento do Cine Palace. Um fato curioso sobre o texto: minha intenção era, com o título “Bons tempos”, enganar um pouco os leitores, que imaginariam uma cidade do passado. O verdadeiro tempo — como você pôde perceber — revela-se apenas no final da história. Contudo, no jornal impresso, ele vinha com um subtexto em destaque: “Em texto ambientado no ano de 2035, criação de Ulisses faz ode ao cinema que encerra suas atividades na próxima quarta”. Espero que, assim como fantasia o texto, o Palace esteja aberto em 2035. Esse, sim, seria um bom plot twist.