A MENINA CADENTE
.
Ela pulou.
Alguns a viram subir, mas não falaram nada. Outros, depois do alarde, tentaram dissuadi-la de pular. Mas agora isso não importava, porque ela já estava no ar.
Tinha somente nove anos. O prédio ainda estava em construção. A multidão era tão pouca, que nem isso era. De seus três filhos – sim, uma menina de seis anos pode ter três filhos – apenas a mais nova estava ali. Quando a mãe finalmente descolou os pés da solidez, a moça cobriu os olhos com a mão.
– Ela está parada?
– Claro que não! Ela pulou!
– Sim… pulou. Mas por que não cai?
– Ela está caindo… mas é bem devagarinho…
Ela pulou e começou a cair.
Começar a cair é enganoso. Às vezes, é tão devagar, é tão estático, que quase não se cai. É diferente: cair e começar a cair.
O vento, àquela altura, fazia seu cabelo se agitar contra o fundo azul do céu. O vestido branco – presente de aniversário de doze anos – também dançava, como se o vertical e o horizontal se confundissem.
– Se corrermos, conseguimos pegá-la no décimo oitavo andar.
– Eles já estão a caminho?
– Tomara que consigam!
– Parece que o elevador enguiçou…
Começou a cair e espalhou-se.
Difícil explicar como alguém pode estar tão longe e estar tão perto, mas era fácil ver.
As lentes combinadas conseguiram se aproximar da menina. O rosto dela se permitiu apresentar. Ela parecia chorar, mas parecia satisfeita, mas parecia furiosa. Parecia querer falar, mas o que diria uma menina de três anos – com sentido – para pessoas tão distantes, no chão?
– Não conseguiram?
– Erro de cálculo…
– Mandaram vir uma rede do circo!
– E isso funciona?
Espalhou-se e comoveu.
No meio do caminho, a queda parecia mais familiar. A curiosidade da audiência logo foi virando apreensão. Uma mão surgiu de uma janela. A menina esticou a sua, mas elas não se tocaram. Não deu para ver bem se elas tentavam se segurar ou se cumprimentar.
A menina segurou os seios – fartos para uma menina de quinze anos – com as duas mãos, como se procurasse alguma coisa. Balançou a cabeça.
– Ela está fazendo que não?
– Ela está fazendo que sim, ao contrário.
– Volta um pouco, vamos rever o exato momento em que ela abanou a cabeça.
– É… pode ser um não… mas pode ser um sim.
Comoveu e confundiu.
O tempo de quem pula é diferente do tempo de quem cai que é diferente do tempo de quem espera. O tempo de quem olha é diferente do tempo de quem vê que é diferente do tempo de quem enxerga.
Não que todos não estivessem falando, mas – agora – alguém falou:
– Ela vai terminar de cair!
– Logo agora, poxa vida, ah, bem agora que estão resolvendo a questão, que pena, quase chegando…
– Que questão? Que pena? Chegando?
– Não tem mais jeito!
Confundiu e chegou.
O chão pareceu sugar a menina – recém-nascida – com tanta força que ela o perfurou. Mais faltosa que um buraco, mais violenta que uma cratera, mais infinita que um universo.
Logo vieram as ondas: a terra como água, a menina como pedra. As durezas cederam ao impacto. Alguns entenderam, outros correram, muito poucos se abraçaram.
Alguns até escapariam, mas nessas horas não dá para saber quem se salva, quem salva quem, se alguém salva alguma coisa.
– É o fim!
– Procurem os sobreviventes…
– As ruínas me entristecem.
– Uma menina?
Chegou e brotou.
Dizem que, certa vez, séculos atrás, uma menina pulou do vigésimo sétimo andar. Era um dia de enganos: tempo, velocidade, espaço, vozes e olhares – tudo enganado.
Entrou com tanta força dentro do mundo que só existe o agora porque ela destruiu o antes.
– O antes era bom, menina ruim.
– O antes era ruim, menina boa.
– O antes foi destruído.
– E agora?
Brotou e destruiu.
Pode ser que que os milênios tenham alterado essa lenda. A menina cadente tem muitas versões diferentes, mas historiadores – contadores de histórias – dão verdades a ela. Parece que houve mesmo uma menina. Em algum lugar no tempo. Em alguns lugares nos tempos.
Mudam às vezes os cenários, às vezes os números, às vezes os mundos. Varia. Varia muito. Ela não morre.
– A menina?
– A lenda?
– A menina morre sim. Em todas as versões.
– Tem certeza?
.
.