QUEBRA DE EXPECTATIVA

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Eu resolvi faxinar a casa e quebrei três coisas: um cinzeiro, a tampa do filtro (mais um pedaço) e o suporte onde pendurávamos o pano de prato. Em menos de uma hora.

Fiquei com muita raiva de mim, por ter quebrado as coisas, até porque isso demandou mais limpeza e alguns reparos. Mas, de quebra (olha o trocadilho!), ganhei uma epifania.

Naquele dia, eu estava fazendo faxina com raiva dos meus colegas de apartamento, o Bruno e o Lipe. Tínhamos feito uma escala de limpeza, mas eles não deram a mínima pra ela. Funcionou duas semanas (talvez, uma) e depois era só eu mesmo, que decidia limpar a casa quando minha rinite e minha paciência se rebelavam.

Talvez os objetos quebrados tenham me ajudado em minha revelação. Se havia três coisas (dentre várias) que me incomodavam, eram os cigarros largados nos cinzeiros, o filtro sempre sem água e o pano de prato embolado em qualquer lugar.

E aí, sem querer (será?), eu os quebrei. Pagaram pelos pecados de outros? Pelos meus? Talvez.

Nesse mesmo dia, eu me lembrei de que a Vilma, faxineira que trabalhou para minha família por alguns anos e que, posteriormente, foi trabalhar nessa mesma casa em que eu morava com meus amigos, vivia quebrando as coisas. “De quem ela tinha raiva?”, me perguntei. “De mim, da minha família, de alguém com quem ela tinha brigado, do sistema capitalista, de ter seu trabalho explorado por um pagamento irrisório?”

Identifiquei-me com ela. Perdoei-a por ter quebrado copos, cadeiras, computador (menos porque isso fosse necessário e mais por necessidade de ser benevolente comigo mesmo).

Nesta semana (anos depois daquela reveladora quebradeira), por conta da Oficina de Criação Literária da Varanda, decidi escrever sobre isso. Estava fazendo faxina, na terça-feira pela manhã, e me retornou essa reflexão, uma boa ideia para o texto da semana, que tinha como tema “a raiva”. Alguns minutos depois, briguei com o Henrique, que não queria sair do quarto e me deixar passar o aspirador na hora que eu queria passar aspirador no quarto onde ele estava. Fiquei puto. Dez minutos depois, quebrei nossa fruteira, da qual gostávamos tanto, eu e ele. Fiquei triste.

Eu não sei bem por que eu quebro o que quebro. Vou dividir a pergunta: por que quebramos o que quebramos? Os motivos são, claro, variados e quase sempre indecifráveis. Mas nem sempre. Às vezes, é possível rastrear os nossos sentimentos: no nosso corpo, nas nossas forças e fraquezas, no que seguramos e no que deixamos cair. É papo de analista e, por isso mesmo, muito real (olha o outro trocadilho!).

Agora, enquanto escrevo, fico pensando: será que, ao invés de utensílios domésticos, eu deveria ter quebrado a cara do Bruno e do Lipe? Ou nossa amizade? Decerto, muitas parcerias entre amigos terminam assim, principalmente quando moram juntos. Deveria a Vilma – ou todas as outras mulheres negras exploradas – quebrar as pernas de seus exploradores? Quebrar os grilhões implica quebrar o quê? Que destruição entre mim e o Henrique poderia ter salvado nossa fruteira?

Tomei um susto aqui, pensando no quanto eu já me quebrei ao longo da vida: dentes, pé, braço, mão, joelhos, coluna – prometo que não vou escrever “coração”. Raiva de mim? Raiva para mim?

É melhor escolher o que quebrar, ou deixar que as coisas escapem, que se quebrem à nossa revelia, ainda que pelas nossas mãos?         

Quebrar: prisão ou liberdade? Intenção ou casualidade? Certo ou errado? Bom ou ruim? Ética ou estética? Trocar os “ous” pelo “e”?

Voltemos ao “talvez”, pois ele pode nos resgatar de transformar um verbo em uma bobagem.

Eu pensei em arranjar um bom termo (para mim mesmo, depois de uma sessão de análise) para ver se lido melhor com minha raiva. Talvez funcione.

Talvez eu apenas faça um poema. Com os versos bem quebrados.

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