CONHECEREIS
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Anualmente a Oxford Dictionaries, departamento da Universidade de Oxford responsável pela elaboração de dicionários, elege uma palavra para a língua inglesa. A de 2016 é “pós-verdade” (“post-truth”). […] Além de eleger o termo, a instituição definiu o que é a “pós-verdade”: um substantivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.
Nexo Jornal, 16/11/2016
*não é fake news
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Isso não é verdade — é mentira! Não é verdade — é história, é invenção, é delírio.
O lugar-comum nos fala de muitos opostos possíveis para a verdade. Como palavra, verdade pode se referir a conceitos muito distintos, dependendo do campo no qual está sendo inscrita. As religiões, as filosofias e as ciências tomam a matéria da verdade por diferentes vieses, inclusive em suas dissensões, pois, com frequência, é a própria disputa sobre o que alcança o status de verdade que separa os credos, as correntes filosóficas e os métodos científicos. Contudo, esbarram-se bem no ponto em que a localizam: a verdade está de um lado; do outro, estão o falso, o não-verificável, o que não é, o que não há.
O axioma lacaniano “a verdade tem estrutura de ficção” retoma a lógica mitológica que Freud estabelece para a neurose, em que verdade e ficção estão do mesmo lado, do ponto de vista da organização psíquica. Se verdade e ficção estão afins — no jogo dos opostos possíveis — o que está do outro lado? O que não se sabe.
Em o Futuro de uma ilusão, Freud nos conta que “quando São Bonifácio abateu a árvore tida como sagrada pelos saxões, os circunstantes acharam que um evento terrível sucederia ao sacrilégio. Nada ocorreu, e os saxões aceitaram o batismo.” Diante da destituição de uma verdade estabelecida, sucede-se, nesse episódio, a sua pronta substituição. Se essa não é a verdade, a verdade deve ser esta outra.
O não saber o que há-de-vir e perceber-se desamparado é convocador de uma verdade qualquer-não-qualquer, que vai ter a chance de responder a perguntas também subjetivas, o que não dispensa o papel do desejo. O episódio da árvore sagrada — tão substituível — reforça a função da verdade como sintoma do desamparo. A verdade entra ali, onde algo, que deseja ser desejado, falta.
O que isso implica para as psicanálises? Quais são as verdades que se substituem para o sujeito em análise? Uma luz sobre essa questão pode ser lançada pelo(s) matema(s) dos discursos de Lacan, que dá um lugar à verdade nessa relação entre o sujeito e o saber, uma verdade que pode, descolada do campo mítico, ser articulada na fala do paciente. Não é a verdade que muda, é o seu lugar no discurso.
A chance de deslocar não só a verdade, mas as perguntas sobre ela — de um campo fenomenológico que as vinculam ao saber –, para o campo da linguagem é o fundamento do trabalho de escuta da pulsão; escuta na qual os afetos importam na interpretação da cadeia significante. Nesse sentido, ouvir a emergência do desamparo — em meio aos fracassos de uma verdade-sintoma que vai se esgarçando — é o ponto de corte para permitir que o sujeito se questione em seu próprio dizer.
No filme O Mestre, de Paul Thomas Anderson, o personagem Lancaster Dodd, líder de um grupo religioso, ao ser confrontado por um terceiro, que acusa sua crença de não ser verdadeira, responde: “We are not helpless”. “Nós não estamos desamparados”, diz o sujeito diante do saber que, na boca do outro, falha em sua função de amparar, de responder.
As verdades sabidas — ou conhecidas, ou reveladas, ou descobertas –, que socorrem o sujeito nesse ermo do desamparo, mostram-se constantemente aptas a aderir a essa suplência sequencial. Passeiam como sintoma, dando ao analista a chance de ouvir, nos significantes que as soerguem, algo da estrutura naquele sujeito.
Em Recordar, repetir e elaborar, Freud separa o tratamento analítico das terapias por sugestão, apontando justamente para a temporalidade de cada sujeito. Extrai, de sua experiência, que é mesmo na repetição que o paciente tem a chance de se ouvir, e, nos vacilos de sua coesão narcísica, “enfronhado em sua resistência”, pode elaborar algo mais duradouro, que sustente não uma verdade completa sobre o saber, mas um movimento de perceber-se de si mesmo inventor, mentidor, ficcionista, verdadeiro, real.
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Este texto foi apresentado na XVII Jornada de Cartéis do Ato Freudiano, em dezembro de 2021.