TRÊS PROBLEMAS PARA O SUJEITO:
outro estudo sobre ambivalência

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Este trabalho é uma “continuação” do meu primeiro estudo sobre ambivalência, “Joyce e Schreber: o sujeito (a)notado”.

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Em O Problema Econômico do Masoquismo, Freud persegue uma trilha que ele mesmo havia aberto em Além do Princípio do Prazer. Ao desconfiar, a partir de sua observação clínica, que a economia psíquica do sujeito – em suas medidas de prazer e desprazer – tinha (ou carecia de) uma outra ordenação lógica, ele propõe tratar essa questão como um problema.          

Fazendo empréstimos do campo da matemática, sem me preocupar em esmiuçar o que constitui a ordenação de um problema, chamo a atenção para uma característica que pode ser proveitosa para pensá-lo na psicanálise: um problema admite muitas soluções. E, justamente por admitir muitas soluções, ele não cede da sua condição de problema.

Outro ponto a ser destacado, para que possamos refletir sobre a ambivalência na clínica, é: o que é um problema para o sujeito é um problema para o analista. Minha proposta, hoje, é trabalhar com três problemas. Três perenes problemas clínicos e, por conseguinte, teóricos.

Sob essa ótica, reavivar a ambivalência – obra ininterrupta do Inconsciente – pode estar no cerne do problema econômico do masoquismo, do problema dinâmico do recalque e do problema descritivo da pulsão.

(Joyce e Schreber – o sujeito (a)notado / BELLEGIGOLI, 2012)

As conjecturas que trago (os três problemas) nasceram de uma outra escrita, Joyce e Schreber – o sujeito (a)notado, fruto também de um cartel. Naquela ocasião, fiz algumas perguntas e inferências, as quais, inclusive, levaram-me a propor um outro cartel, de viés clínico, com uma aposta na leitura de A direção do tratamento e os princípios de seu poder. Acho que pode ser útil ouvir este meu trabalho, hoje, como um desdobramento daquele, por isso o acréscimo em seu título: outro estudo sobre ambivalência.

Estou chamando de ambivalência esse momento em que uma coisa pode ser duas coisas. Pode valer duas coisas (ou mais). Vou tomar o número 2 como o referencial da ambivalência (…). O 2 é o primeiro número. É a primeira inscrição no Simbólico. Do 2, pela divisão, obtemos o 1; e, do 1, por sua ausência, chegamos ao 0. Esses são – nessa ordem – os números primordiais; os que tornam possíveis todos os outros. E é bom dizer que o 2 vale para tudo [muita coisa], não só para o frágil conceito de ambivalência, mas para tudo o que é diferenciável. O que o 2 anuncia são pares possíveis, conjuntos imagináveis. O 2 é o Reino do Infinito.
[…] Essa construção remonta à ambivalência aterradora que cai sobre nós junto com a estruturação do Simbólico, como registro. E desse momento não há sujeito que passe incólume. Como bem nos ensina Freud, no fort-da há a instauração de uma repetição em que a atividade recupera a passividade e dá início a um movimento retroalimentado. Acredito ser assim também com a ambivalência. Esse 2, que chega ao sujeito no susto, será não só rechaçado, como também incansavelmente buscado, e abandonado, e recuperado, e esquecido, e rememorado, e, com sorte, reinventado. Fort-da.
[…] será que o problema da ambivalência é a ambivalência em si ou a tentativa de lidar com as vicissitudes das escolhas demandadas por ela, num tempo irrecuperável? Esse 2 do qual falo é a inscrição da ambivalência ou já é o que se fez dela?

(Joyce e Schreber – o sujeito (a)notado / BELLEGIGOLI, 2012)

Estou tratando, portanto, a ambivalência como um problema primordial. A ambivalência abre uma fenda, sobre a qual colocamos algo: a linguagem.

Por isso a buscamos novamente: para reaver algo perdido, “escondido” sob esse rasgo que a linguagem insiste em suturar. É como se a ambivalência fosse um portal, o qual nos levaria de volta a um tempo onde atividade e passividade não existissem, não tivessem sido diferenciadas. Mas este lugar não existe, de forma que o limiar do portal é também o seu limite.

É entre o rochedo da castração e a travessia do fantasma que eu estou tentando localizar esses três problemas; para que, mesmo sem atravessar o portal, possa haver algo além dele.

Assim, assumi a posição de tratar a ambivalência como um tempo – um instante – e não como um lugar. Os diagramas que agora apresento são ensaios que visam a observar a ambivalência e sua incidência em três importantes elementos da psicanálise e da análise de um sujeito: a pulsão, o recalque e o masoquismo.

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Acho que uma boa pista para pensarmos na ambivalência como um acontecimento psíquico é o par amor/ódio. As elaborações que Freud traz sobre esse par –  articulando sadismo e masoquismo,  o narcisismo, os tempos da pulsão e o Édipo – são determinantes no caminho teórico da psicanálise. Mas, de fato, se tais construções freudianas são originais no sentido da letra, não se pode dizer o mesmo com relação à sua matéria, uma vez que a literatura nunca se esquivou de fazer uso das múltiplas correlações entre amor e ódio; e, para além disso, do seu desemparelhamento. Aliás, com frequência, a literatura nos aponta caminhos para a direção de um tratamento, que é a passagem de um par de opostos imagináveis (ou imaginários) a um par de opostos possíveis (como os grãos de areia em uma ampulheta).

A verdade é que as flagrantes incertezas da leitura dos grandes conceitos Freudianos são correlatas às fraquezas que o oneram o labor prático.
Queremos deixar claro que é na medida dos impasses experimentados para captar sua ação em sua autenticidade que os pesquisadores, assim como os grupos, acabam por forçá-la no sentido de um exercício de poder.
Esse poder, eles o substituem pela relação com o ser em que se dá essa ação, fazendo com que seus meios, nomeadamente os da fala, decaiam de sua eminência verídica.

(A direção do tratamento e os princípios do seu poder, 1958 / LACAN, 1998, p. 618)

Isolar esses três problemas tem sido, para mim, uma demanda da clínica. Têm sido problemas teóricos, pois têm sido problemas clínicos. E o problema clínico é o problema do sujeito. E como sabemos que cada sujeito é um sujeito, a minha aposta é multiplicar as possibilidades de leitura desses problemas e, sobretudo, resguardar sua eminência como problemas, pois assim não cessarão de buscar soluções. Desse modo, cada paciente terá a chance de colocá-los em xeque. Isso é bom!

Mais além, são também tentativas de realinhar, na prática da escuta, a interpretação e seu caráter adivinhatório, dando descanso à tentação tão comum do analista que é de demandar a confirmação, da boca do paciente, de seus esforços interpretativos. É livrar-se do risco de nomear a pulsão, ou de querer trazer à tona a ideia recalcada, ou de enxugar o gozo. É deixar essas laboriosas tarefas para o sujeito.

Nesse sentido, a observação e a operação da ambivalência na análise pode permitir que – aproveitando a metáfora da ampulheta – os grãos sejam rearranjados (talvez essa seja uma metáfora para disponibilidade do significante). O analista tratar a ambivalência como um instante, o qual remeteria o sujeito a um lugar vazio (mítico), pode fazer o paciente escapar de aceitar a ambivalência como constitutiva. Pode, ao ajudá-lo a ceder do tormento do 2 [não existe relação sexual]; dissuadi-lo de embrenhar-se na selva fantasmática.

Por fim, permito-me mais um passo. No estudo anterior sobre ambivalência, tratei o 2 como Reino do Infinito e, por isso, como Reino do Impossível. Gostaria então, hoje, de acrescentar – ainda sem preocupações com precisão – um oposto possível (quiçá, poético) para este reino: o Reino do Impossível é, em um avesso psicanalítico, o Reino das Possibilidades.

BIBLIOGRAFIA

BELLEIGOLI, Ulisses. Joyce e Schreber: o sujeito (a)notado. Disponível em: https://ulissesbelleigoli.com/txt-joyce-e-schreber/

LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios do seu poder (1958) In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

         

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Este texto foi apresentado na XII Jornada de Cartéis do Ato Freudiano, em julho de 2015.

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