JOYCE E SCHREBER – o sujeito (a)notado
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“Salãoiogapapão no conjunto de salas de Dawson. Ísis Desvendada. Nós tentamos penhorar o livro deles em língua pali. Sentado de pernas cruzadas à moda oriental sob um guarda-sol ele impera um logos asteca, operando em níveis astrais, a almassuperior deles, mahamahatma. Os fieis hermetistas aguardam a luz, amadurecidos para o noviciado, rodamroliçosemroda dele. Louis H. Victory, T. Caulfield Irwin. As damas de Lótus tomam conta deles com os olhos, com suas glândulas pineais incandescentes. Repleto de seu deus, ele impera, Buddh, sob sua bananeira. Golfador de almas, engolfador. Elesalmas, elasalmas, montões de almas. Engolfadas em bribrados lamurientos, rodopiavam, rodopiando, elas se lamentam.”
James Joyce, in Ulisses.
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“Nem mesmo posso afirmar que tudo para mim seja certeza inabalável; muitas coisas permanecem também para mim como conjectura e verossimilhança. Sou também apenas um homem e, portanto, preso aos limites do conhecimento humano;”
Daniel Schreber, in Memórias de um doente dos nervos.
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“Quem fala? Quem escreve?”, pergunta-se(nos) Barthes em seu Escritores e Escreventes. Aproveitemos essa pergunta para engrenar esse trabalho, mas não para, como Barthes, perseguir uma sociologia da palavra, mas na tentativa de lerouvir algo que venha do sujeito.
Um cartel intitulado James Joyce não é pouca coisa (até porque ele tem mesmo um nome, um nome de gente). A aposta em uma leitura coletiva, em voz alta, de Ulisses foi o primeiro passo de um caminho que se fechou, mas não antes de abrir algumas possibilidades. O texto de Joyce (ou sua leitura) foi artífice de uma larga gama de embotamentos, dos silêncios aos insights. A leitura foi abandonada; buscamos outras formas de nos aproximar do autor.
Nada de novo no front. Não fomos os primeiros a abandonar Joyce. Mesmo. Não tenho estatísticas à mão (e nem precisamos delas), mas tenho certeza que Ulisses deve estar bem colocado no ranking de “parei de ler o livro antes de chegar à metade”. E, caso esse ranking exista, veremos, bem perto de Joyce, o Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber.
Essa ilação nos leva a conjecturar razões – que com certeza são diversas – para que esses livros tenham ganhado esse status, ou essa fama. Opto por chamar a atenção para um possível motivo, um que me saltou aos olhosouvidos: a ambivalência dos discursos de Joyce e de Schreber.
Durante o cartel, vez ou outra, levantava-se a questão da psicose, que parece resvalar, em muitos momentos, no texto de Joyce. Essa foi uma das motivações para abrir esse artigo com uma citação de Ulisses; citação que contém, a meu ver, o ressoar de uma voz psicótica. Logo em seguida, outra citação, um trecho de Schreber que caberia bem – e talvez até com algum louvor – na boca do neurótico.
Antes de prosseguir, permitam-me apenas estabelecer alguns limites para não cairmos em desvios arriscados. A aproximação desses textos é forçosa, assim como poderia ser sua separação. Aliás, vejo até mais respaldos para separá-los do que para juntá-los. Para desajuntá-los, se assim quisermos, podemos interrogá-los nesse sentido: De onde escrevem? Por que escrevem? Para quem escrevem? Escrevem do Real? Escrevem sua fantasia? Seu sintoma? Será que, além de escrever, esses nomes falam? Enfim, essas perguntas são para mantermos em mente que não estamos tratando aqui de textos análogos, mas de escritas que, aproximadas, nos permitem saber um pouco.
Deixando de lado todas essas possíveis disjunções, a questão que se abriu para mim, a partir dos escritos desses autores, trouxe essas outras perguntas: Podemos ler nesses textos algo da estrutura? Neurose e Psicose podem estar ali, escritas pela mesma voz? Há uma apropriação, via Simbólico, de um discurso adjacente? Quem organiza esse discurso, quem co-manda aquela palavra? A ambivalência que leio refere-se a o quê?
Estou chamando de ambivalência esse momento em que uma coisa pode ser duas coisas. Pode valer duas coisas (ou mais). Vou tomar o número 2 como o referencial da ambivalência, pois isso nos servirá na perseguição de alguns conceitos. O 2 é o primeiro número. É a primeira inscrição no Simbólico. Do 2, pela divisão, obtemos o 1; e, do 1, por sua ausência, chegamos ao 0. Esses são – nessa ordem – os números primordiais; os que tornam possíveis todos os outros. E é bom dizer que o 2 vale para tudo, não só para o frágil conceito de ambivalência, mas para tudo o que é diferenciável. O que o 2 anuncia são pares possíveis, conjuntos imagináveis. O 2 é o Reino do Infinito. Não contem aos matemáticos que eu disse isso, eles vão ficar bravos. Mas essa construção nos é mais que útil; é valiosa.
Ela remonta a essa ambivalência aterradora, que cai sobre nós junto com a estruturação do Simbólico, como registro. E desse momento não há sujeito que passe incólume. Como bem nos ensina Freud, no fort-da há a instauração de uma repetição em que a atividade recupera a passividade e dá início a um movimento retroalimentado. Acredito ser assim também com a ambivalência. Esse 2, que chega ao sujeito no susto, será não só rechaçado, como também incansavelmente buscado, e abandonado, e recuperado, e esquecido, e rememorado, e, com sorte, reinventado. Fort-da.
A ambivalência que podemos lerouvir no fort-da está também lá no segundo tempo da pulsão, está no Édipo, está esticada na etiologia das estruturas, e (porque não?) está no coração do nó borromeano. Não contem ao Lacan que eu disse isso. Ele me jogaria no buraco.
Recuperar a ambivalência, ou ainda melhor, recriar a ambivalência – trabalho do sujeito do inconsciente – parece perpassar alguns pares importantes na lógica do desejo: a falta e o objeto; a reação terapêutica negativa e a cura; a psicose e a neurose. A ambivalência está ali, ó, espreitada pelo sujeito.
Não que o sujeito já não dê conta de cobrar de si essa ambivalência mítica, mas fico aqui pensando se não é um pouco disso que pedimos, por exemplo, ao neurótico quando o convidamos, em análise, à associação livre ou a relatar seu sonho. “Venha, não deixe seu inconsciente tão escondido. Traga-o para dar uma volta, no sol, para tomar um pouco de luz. A céu aberto”. De fato, não podemos obter tanto do neurótico. Mas podemos pedir. E o que podemos pedir do psicótico? É uma outra pergunta. De modo mais abrangente: o que se pede ao sujeito em análise?
Nesse ponto, a escrita pode nos dar, em alguns casos, uma abertura mais larga para enxergar essa tentativa de recriação, de resgate de um estágio psíquico de ambivalência. O que o sujeito oferece, na escrita?
Pode ser que, na escrita, os tropeços de caminhar pelo Simbólico se façam mais notáveis. Porque o Simbólico, como chão, se coloca como a própria escrita, e a escrita nos diz não apenas de uma tentativa de simbolizar, mas também de um testemunho do que foi possível de se inscrever no sujeito. É no registro Simbólico que o je pode ser apresentado ao moi. É no registro Simbólico que o je pode ser apresentado ao moi?
Jogar com as palavras, com tão bem fazia Lacan, pode ser a pista necessária para disponibilizar um significante. E os efeitos desse jogo, que é do sujeito, serão presentificados no Simbólico.
Ainda tentando, nesse esteio, observar a difícil lida com a ambivalência, vou, para efeito ilustrativo, brincar um pouco com nossos jargões psicanalíticos. Ao ouvir a expressão “perda de gozo”, obviamente, ouvimos o significante “gozo”. Então podemos sugerir que, na perda de gozo, há gozo. Quando falamos em “sujeito inconstituído”, falamos, com todas as letras, em “sujeito”. O Simbólico escancara o paradoxo. Na escrita (e, por vezes, no trabalho de análise), ao avessar as metonímias, simbolizando, o sujeito é capaz de se deparar não só com o significante, mas com a cadeia significante e com o seu próprio movimento dentro dessa cadeia. Se pudermos ir mais além nesse jogo dos paradoxos, podemos até pensar que, na expressão “foraclusão do Nome-do-pai”, está incluído o Nome-do-pai.
Isso nos ajuda a pensar que a escrita – seja a de Schreber ou a de Joyce – pode ser uma boa lente para se investigar a estrutura, justamente por não ser fiel a ela. A psicose não está anotada nas memórias de Schreber, nem a neurose está anotada em Joyce. Nem vice-versa. O que está ali, anotado, (a)notado, a ser notado, é o sujeito e sua peleja com a ambivalência primordial. Mas o fato é que podemos, além do sujeito, na outra ponta do carretel, ler também as possíveis estruturas. Freud leu. Lacan leu.
No filme Strapped, de Josehp Graham, um de seus personagens, um jovem, fala sobre sua resistência em dar um nome, um rótulo, à sua sexualidade. Seu interlocutor, mais experimentado, com percepções e conceitos mais ajeitados, lhe responde: “Caras como eu lutaram na linha de frente para que caras como você pudessem desfrutar do luxo de se sentirem ambivalentes.”.
Assentar teorias, falar sobre estruturas, organizar os restos… essas construções parecem já estar no campo do 3, talvez do 4. Adaptando a fala do personagem de Graham ao nosso contexto, poderíamos dizer que “é preciso ir mais além, é preciso inventar algo, dar nome a alguns bois, para que possamos nos dar ao luxo de acolher, mesmo que por um instante, o ambivalente inominável”.
Antes de terminar, acredito ser ainda proveitosa a formalização de uma pergunta que pode ter ficado meio diluída em tantas idas e vindas do texto: será que o problema da ambivalência (porque sim, isso é um problema para o sujeito) é a ambivalência em si ou a tentativa de lidar com as vicissitudes das escolhas demandadas por ela, num tempo irrecuperável? Esse 2 do qual falo é a inscrição da ambivalência ou já é o que se fez dela?
Sob essa ótica, reavivar a ambivalência – obra ininterrupta do Inconsciente – pode estar no cerne do problema econômico do masoquismo, do problema dinâmico do recalque e do problema descritivo da pulsão.
Parece muito… e é porque é muito. A ambivalência, lá no começo, faz uma fenda profunda, onde nasce a linguagem. Por isso comporta tanto. Por isso o 2 e seus desdobramentos (a saber, o 1 e o 0) são tão fundamentais. Por isso são também tão úteis ao 3 e ao 4, pensamentos e teorias. Por isso esse primordial é tão difícil. O 0 é difícil. O 1 é dificílimo. E o 2, por ser o Reino do Infinito, é também o Reino do Impossível. O 2 é impossível.
Joyce, diante do 2, escreveu algo.
Schreber, diante do 2, escreveu outro algo.
E essa última pergunta, que é a mais importante para mim, é de ordem prática, e reverbera na clínica: além desse constructo Joychreber, que podemos compor por tantas vias (pelo 3, pelo 4 e até pelo engodo do 5), como fazer para lerouvir esses sujeitos em suas escrituras?
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Este texto foi apresentado na X Jornada de Cartéis do Ato Freudiano, em 24 de novembro de 2012.