VOCÊ PODE SUBSTITUIR O SEU FRANGO

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            No porta-malas quente, a galinha corria o risco de virar galinha assada. Aquele destino parecia se desenhar, de uma maneira ou de outra, mas – todos sabemos – o destino brinca.

            O próximo passageiro a entrar no carro se jogou no banco de trás com um suspiro. Era um dia de fracassos. Gael estava frustrado ao cubo: acabara de participar de uma entrevista de emprego que durou menos de 4 minutos; fora bloqueado no WhatsApp pelo moço do Tinder e, para completar, o seu participante favorito tinha sido eliminado no paredão.

            O motorista sentiu que o dia de Gael não ia bem – coisa de taxista – e perguntou:

            – Dia ruim?

            – Nem me fala…

            – Chefe mala?

            – Nem chefe eu tenho, moço…

            – Namorada anda derrapando?

            – Quem me dera! Seria até uma sorte se eu gostasse de mulher…

            – Tá puto com o governo?

            – Talvez. O Brasil não sabe votar… – respondeu desanimado.

            Nessa hora, um cacarejo – não o seu próprio – chamou a atenção de Gael.

            – O que foi isso?

            – A galinha no porta-malas.

            – Você tem uma galinha no porta-malas?

            – Foi o jeito, né? Ela tá reclamando um pouco, mas quem não estaria? Sendo levada para o abate.

            Agora, sim, o dia de Gael tinha mergulhado num abismo de impotências. Como se não bastasse seu reiterado fracasso em salvar a si mesmo, agora estava ali, diante do cativeiro de um animal indefeso, sendo lembrado da tirania dos homens sobre as outras espécies.

            Outro cacarejo. Um estalo. Lembrou-se de ter ouvido, no seu podcast preferido, uma frase que lhe inspirara: “quem não é capaz de lutar pela liberdade do outro jamais experimentará a beleza de um voo com as próprias asas.”

            – Não! – Gael deixou escapar quase em um grito.

            O motorista freou o carro.

            – Não era pra entrar aqui?

            – Você não vai matar esse frango!

            – Que frango?

            – O do porta-malas!

            – A galinha?

            – Isso. Essa franga não merece morrer para o seu prazer!

            – O senhor quer que eu solte a franga?

            – Não é hora para piadas! Eu estou falando sério! Chega de tratarmos os animais como se eles fossem nossos escravos, como se suas vidas não tivessem valor! Essa franga é uma vida! Ela não é o seu almoço!

            O taxista, que olhava pelo retrovisor, virou o corpo para trás. Ficou em silêncio por alguns segundos. Estava sério. Respirou fundo antes de falar:

            – Minha filha também é vegetariana… não gosta de comer os animais.

            – Sua filha tem consciência de classe!

            – Ela é uma idiota. Mas o mundo está cheio de idiotas, né? Agora vê se sossega e para de implicar com a minha galinha.

            O motorista retomou sua posição ao volante, resmungando:

            – É cada doido que me aparece…

            Gael ficou, por alguns instantes, sem saber o que fazer. A galinha cacarejou novamente. Um apelo? Foi quando se lembrou do perfil do Instagram “Manual do Vegano”, que dava dicas práticas para a vida de quem tinha optado por uma vida sem crueldade animal. Pegou o celular e começou a tentar achar um post que pudesse ser útil naquele momento.

            – “Banana é amor” não; “Construindo um mundo mais saudável” não; “O agro não é pop” não; “Natal vegano” não; “Artistas veganos” não; “Filhos veganos” não; “Procurando dicas para substituir o frango?” SIM!!!

            Clicou imediatamente no post. As dicas eram boas: banana, jaca, amêndoas, couve-flor, tofu, beringela. Gael quase explodiu de alegria. Tentou conter-se. O plano estava desenhado.

            – Motorista, por favor – ele tentou parecer calmo e desinteressado. – Lembrei que preciso comprar alguns ingredientes para o meu almoço. Tem alguma feira no nosso trajeto?

            – Bem… feira “FEIRA” não tem não. Mas tem o hortifruti.

            – Serve! Perfeito!

            Vinte minutos depois, Gael estava com duas caixas de alimentos – nenhum animal morto – cheias.

            – Eu já ia te deixar pra trás! – o motorista reclamou – Que compra demorada! Achei que era rapidinho! Ó, o taxímetro tá rodando!

            – Me desculpe! Era uma compra importante! Você abre o porta-malas pra mim?

            – Ih, não vai dar. Por causa da galinha.

            – A galinha fica no cantinho.

            – Ela vai bicar isso aí tudo.

            – É direito dela.

            – Sei não… isso pode deixar ela muito agitada.

            Gael perdeu a paciência e deu um ultimato:

            – Olha, essa aqui é minha comida! Ela tem o mesmo direito de estar no porta-malas que a sua! Cada um está apenas cuidando do seu almoço! Se cada um cuidar da sua vida, tudo dá certo!

            O porta-malas foi aberto. Durante um eterno instante de gratidão, a galinha olhou dentro dos olhos de Gael. Depois, olhou para o futuro. E abriu as asas. As mãos não foram capazes de conter sua fuga. Uma das caixas caiu no chão. As bananas se espalharam no asfalto.

            Gael sorriu. Um pequeno, mas valioso, triunfo.

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Este texto foi escrito para ser gravado pelo pessoal do Hupokhondría para o podcast deles, o Phármakon, em julho de 2021.

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