COM SENTIR

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Estava escuro quando eu acordei. Eu não sabia se era por causa da hora ou do tempo ruim. Pensei que queria pular aquela quarta-feira, ir direto para a quinta, de preferência, descansado. Percebi que eu estava exausto. É possível já acordar cansado?

A chuva estava fraca, mas mesmo assim eu tive que colocar a minha roupa impermeável completa. Eu adoro andar de moto. Eu odeio andar de moto dentro desse monte de nylon. Quando cheguei na venda, minha primeira entrega de todos os dias, já comecei a sentir a fisgada na lombar. Procurei não pensar no incômodo. Ignorar a dor ajuda ou piora?

Na minha segunda entrega, quando abri a caçamba, vi que tinha entornado alguma coisa. Nem sei o que ela aquilo, se era sabonete, xampu, ou produto de limpeza. Quis chorar, de raiva. Raiva de mim ou raiva dela, ou dele, do universo?

Liguei para a moça que tinha mandado o embrulho e expliquei. Ela falou que eu teria que pagar pelo estrago. Joguei o embrulho todo a uns dez metros de distância, no meio da rua. Quebraram-se outras coisas. Eu me arrependi. Bloqueei o número dela. Não queria arcar com as consequências. Fiquei com vergonha. A vergonha vem antes ou depois do fracasso?

Minha fome veio antes da hora do almoço. Pensei em passar na minha mãe para almoçar, mas tenho tido medo de contaminá-la. Já fazem 58 dias que eu não a vejo. Ela tem doenças renais e respiratórias, e já conta seus 77 anos. Se pegar o vírus, pode ser fatal. Meu medo se embolou em uma saudade antecipada. Me perguntei se esse frio que eu sinto no joelho é medo. O medo aparece no corpo?

Fiz ainda quatro entregas antes de parar para comer um mexido. A porta do bar está ficando entreaberta, porque o decreto diz que ainda não é hora. Fiquei me sentindo culpado de estar ali, mas a comida é barata e boa, e eu quase me emocionei de estar comendo, sem chuva na cabeça. Não sei se foi o alívio do alimento ou o do descanso. A gente pode sentir alegria em dias tão ruins?

A bateria do meu celular acabou bem antes do normal. Eu tinha levado o carregador portátil, mas não quis usar. Quis ir pra casa, não queria mais trabalhar. Minha máscara caiu na hora em que eu fui arrumar o relógio. Caiu numa poça. Peguei e sacudi, e alguns respingos voaram em mim. Eu já estava molhado, mas mesmo assim me incomodei. Por algum motivo que não quero saber, me senti humilhado. Será que eu sou louco quando eu quero morrer e viver ao mesmo tempo?

Eu entrei em casa e liguei o celular na tomada. Chegaram várias mensagens. O meu ex-marido mandou uma foto de uns seis anos atrás, de nós quatro na praia, abraçados, no sol, com os pés na água salgada. A foto vinha seguida de um áudio, no qual minhas filhas falaram que estavam com saudades e que era pra eu me cuidar. Eu estava molhado, suado, com dor, mas um pouco feliz. O aconchego do amor pode ser sentido de longe?

Outra mensagem dizia que a aula on-line tinha sido cancelada, e falei “graças a deus”, mesmo sendo ateu. Em seguida, me lembrei que iria pagar a mensalidade com multa. Decidi que ligaria pra a faculdade, no dia seguinte, para tentar negociar, para explicar minha situação, afinal, estávamos todos vivendo juntos o horror. Odiei um vírus como odiei a prima que me ridicularizava na infância. Quis matá-lo. O ódio pode ser bom?

O banho foi bom, muito bom, um dos melhores banhos que já tomei na vida. Durou mais tempo do que o planejado e eu senti prazeres que acalmaram meu corpo e minha aflição. Eu achei, por alguns minutos, enquanto eu me secava, que eu merecia muita coisa boa na minha vida, tudo de bom, essas coisas que nos desejam no aniversário. É pecado se gostar sem culpa?

Quando deitei na cama, pensei que queria pular a quinta-feira, ir direto para a sexta. Fiquei desanimado quando pensei na possiblidade de acordar cansado. Lembrei da sensação que senti pela manhã. O meu dia cruzou minha memória me lembrando de tudo o que eu tinha sentido. Em uma jornada. Lá fora, a chuva parou. Combinei comigo mesmo de não sonhar. Nem coisa boa, nem coisa ruim. Queria só sumir de mim um pouco. É possível, mim mesmo, não sentir tanto assim?

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Este texto foi publicado no e-book “Reflexões dos tempos de isolamento”, publicado pela Clínica Rezende, em agosto de 2020.

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