A INVENÇÃO DAS ESTRELAS
.
(história de tradição oral, recontada por Ulisses Belleigoli)
.
Naquele tempo antes de tudo, quando os animais ainda falavam, as árvores ainda sussurravam e quando havia apenas uma grande tribo (onde todos se amavam na mesma língua)… naquele tempo, o céu era dessa altura. Talvez um pouco mais alto, da altura de uma criança.
Se o céu já era azul, não se sabe direito, porque, mesmo estando tão pertinho, era difícil vê-lo, pois as árvores, ao crescerem, iam se envergando e se misturando umas às outras. Nos poucos espaços que havia entre elas, os pássaros voavam apertados.
Mas quem tinha mesmo problema com esse céu tão baixo eram as crianças. Elas eram responsáveis por fazer quase tudo na grande tribo. Isso porque os adultos viviam com dor nas costas, pois tinham de andar sempre curvados para não baterem a cabeça no céu. Então as crianças tinham de guiá-los a todos os lugares, de modo que nunca sobrava tempo para brincar. E brincar era o que elas queriam.
Mas um dia, um menino bem menino, que era como são os meninos de todos os tempos, ficou incomodado por não ter tempo para brincar. Invocado como era, convocou as outras crianças para apresentar sua grande ideia: ele queria levantar o céu!
Os meninos e meninas da grande tribo acharam a ideia muito ousada, mas quando pensaram em como seria divertida a vida se o céu fosse lá em cima – e se os adultos não vivessem pedindo favores e sempre se lamentando da insistente dor nas costas –, resolveram ajudar o menino em seu plano.
A missão começava com cada criança segurando um pedaço bem longo de bambu. O menino instruiu todos para que afiassem as pontas, para que o bambu ficasse parecido com uma lança. Depois, pediu que todos espetassem aquela ponta afiada no céu. Pronto! Estava tudo preparado. Quando a contagem chegasse ao três, todos empurrariam o céu para cima, e tudo estaria resolvido.
– Um, dois, três: já!
E todos empurraram o céu com seus bambus! Mas nada aconteceu. O céu continuou paradinho, no mesmo lugar. Que tristeza que deu no coração de todo mundo… As crianças já iam até se dispersando quando o menino se lembrou de uma palavra: Iaô! (que quer dizer força na língua da grande tribo). E, retomado o ânimo, todos combinaram de, ao empurrarem o céu, gritarem bem forte, com toda a força que pudessem, a palavra “Iaô”. Com os bambus novamente espetados no céu, começou a contagem:
– Um, dois, três: IAÔÔÔÔ!
E dessa vez – o menino conferiu de perto – o céu tinha subido. Uns quatro dedos, mais ou menos. Mas tinha subido! Foi então que ele percebeu que aquela palavra evocava mesmo uma força transformadora. E suspeitou que, mais importante do que a força da garganta, era a força do grito que vem do coração. Dessa vez, combinou com as outras crianças de colocarem o poder de suas vozes bem lá dentro de si mesmos, e sussurrarem, bem baixinho, a palavra “Iaô”. Novamente, a contagem:
– Um, dois, três: Iaô…
Nem a antiga língua da grande tribo tem palavras para descrever o encantamento daquela manhã. O céu foi subindo, subindo, subindo, até colar lá no infinito. E as árvores se espreguiçaram, e os pássaros se alvoroçaram pelos ares! E os adultos desencurvaram-se e animaram-se para o trabalho, para a vida, para a liberdade que haviam ganhado de presente.
As crianças – libertadoras – foram também libertadas. Naquele dia, brincaram até o céu escurecer. A alegria delas era tanta que contagiou toda a grande tribo, até os mais velhinhos. Quando chegou a noite, fizeram uma grande festa para celebrar a subida do céu. E qual não foi a surpresa de todos quando, ao olharem para o céu, viram que toda a abóboda celeste estava cheio de furinhos: as marcas das pontas dos bambus. E que agora, em cada buraquinho, brilhava uma luz, que parecia vir de um tempo muito distante.
Foi assim que as crianças inventaram, no mesmo dia, a liberdade e as estrelas: essas coisas que brilham.
.
——————————
.
Esta é uma história de tradição oral. Eu não sei sua origem, mas já ouvi que pode ser de tradição norte-americana, de povos nativos do atual Canadá. Da primeira vez que a ouvi, contudo, me foi dito que era de um conto de tradição sufi. Há outras histórias africanas com temáticas e ações parecidas. Então, se você souber mais informações, seremos gratos!
Este texto foi estabelecido por mim, especialmente para a apresentação “Latinidade”, dos Contadores de Histórias do Granbery, que entrou em cartaz em setembro de 2014. Antes disso, eu a contava em uma versão mais reduzida. No entanto, quando sentei para redigi-la para o espetáculo, enlevado pelo teor de nossa apresentação, aumentei os meus pontinhos e acrescentei esse paralelo com a invenção da liberdade.